Acredito que, sendo a primeira vez que posto neste blog, seria interessante uma guinada sobre o próprio nome que o compõe. De chofre, respondo a questão-título: Tenho fome de quem tem fome. Mas não a fome em stricto sensu, já que “bebida é água, comida é pasto”, queremos mais, mais do que matar a fome. Nesse ponto, concordo com outra canção, desta vez de Adriana Calcanhotto: “Eu gosto dos que têm fome, dos que morrem de vontade, dos que secam de desejo, dos que ardem”.Pois bem, eu tenho fome dos que têm fome, talvez por isso a Calcanhotto me seja tão atraente.
Pelo que pude perceber a essência do blog é a fome. Andando em companhia dela, muito provavelmente não teremos condições de realizar muita coisa, por isso sempre procuro sanar minha fome e meu prato predileto são os artistas. Um bom artista é alguém que vive faminto, sedento e que nunca se sacia.
Um famigerado, no sentido popular desta palavra, é Théodore Chassériau, pintor francês do conturbado século XIX. Conturbado, pois a meu ver é o século das grandes transformações, das grandes aberturas das quais Chassériau foi partícipe.
Pelo que conhecemos, isso desde o livro de Chevillard (o primeiro inteiramente consagrado ao pintor, cuja primeira edição é de 1893), é que Chassériau sempre, desde criança, fora um faminto. Consumia tudo que podia e expelia em forma de desenhos. Logo cedo, aos dez anos, foi admitido no atelier de Ingres. Um fato notável, já que o também faminto Jean-Auguste Dominique Ingres, no momento era um dos pintores de maior expressão naquele cenário francês.
Mas, nosso amigo cheio de fome, não parou ou se contentou com tanto. Seria lícito resgatar o “ponto de fuga” deleuziano, ou seja, quando estamos firmes em um ponto, “fugimos” para outro lugar. Para mim, é o que acontece com os de almas sedentas. Teixeira Coelho, em Arte e Utopia, falava algo semelhante, dizendo que a arte é utópica, pois quando ela chega a algum lugar ela não está mais neste lugar, já é outra coisa, daí utópica.
Então, Chassériau, que era o aluno predileto de Monsieur Ingres, pouco a pouco começa enveredar-se para outro caminho. Se seu mestre zelava pela linha, o maior inimigo era quem a abolia: Eugène Delacroix (a maior expressão do romantismo pictórico), que ao contrário de Ingres deixava as manchas de cores tomarem conta da composição.
Chassériau, não toma partido, não fica do lado de nenhum dos dois. Entretanto, sua obra enquadra-se neste entremeio, mas não é nem um nem outro. Lembro das aulas de história da arte das quais o professor enfatizava sobre Delacroix: “Delacroix não é romântico, não é clássico é Delacroix, e ponto”. Nada mais justo do que transportar este comentário à Chassériau. Por muito tempo o são-dominguense, que com dois anos foi para Paris, foi limitado entre um epígono, dos dois grandes mestres.
Melhor seria falar em prógono, já que se trata de um toda nova arte, muito peculiar, que tentava então conciliar não apenas dois movimentos tidos como antagônicos (clássico e romântico), mas mesmo um mundo pagão e outro cristão, mistura de etnias, oriente e ocidente. Ou seja: Chassériau, e ponto.
Eu tenho fome dos que têm fome, tal qual Chassériau, que morreu muito cedo, com 37 anos, mas que nos deixou uma comida toda saborosa com um tempero novo. Um chef exemplar, digno das honrarias das mais altas cozinhas do mundo.
Alias, hoje é domingo, dia de sentar-se à mesa junto com a família. Então me despeço de todos os famigerados, por que já viajei muito na maionese e toda essa história me deixou com fome.
Martinho Júnior, o convidado desta semana para "viajar na maionese" é semiólogo, assim como nosso professor de Teoria das Mídias II Lucas Pires (que deveria ter postado esta semana, mas "declinou do convite"). A coluna Viagens na Maionese é postada todos os domingos (quando a moderadora não está com problemas, lógico...)
3 comentários:
Que belo texto esse! A fome anda se espalhando por aí como uma praga da cegueira saramaguiana. Deixemos a gula para outrens, cultivemos apenas a fome e dela nos saciemos.
Saudações semiólogas às devoradas e ao novo esfomeado que escreveu este texto... Um grande faminto
Lindo texto. Bem complexo. Perfeito para uma "viagem na maionese".
Agora, sobre o comentário, de que tipo de fome estamos falando?
Martinho...seja muito bem vindo ao nosso blog. Obrigada por me apresentar a Chassériau. Acho que, a exemplo dele, todos temos de ser "eternos famintos", em busca do conhecimento, e de "personalidade própria". Ainda assim, não sei se é o bastante. Que viajada na maionese, adorei.
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